Na avaliação do jornalista Ignácio Ramonet, o Fórum Social Mundial vive um momento de impasse político. Para ele, os movimentos sociais internacionais não conseguiram encontrar uma forma de articulação consistente capaz de enfrentar as atuais crises no mundo.
Marie Dominique Vernhes e Peter Strotmann - Freitag
Ignácio Ramonet é, desde 1991, redator-chefe do jornal Le Monde Diplomatique. Em 1997, participou da fundação do movimento internacional Attac (Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos). Foi um dos articuladores, em 2001, do primeiro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. No dia 12 de janeiro deste ano, Ramonet participou do Simpósio Rosa Luxemburgo, em Berlim, fazendo uma conferência sobre o fracasso do chamado “quarto poder”. Entre outras coisas, defendeu maiores esforços na construção de meios de comunicação resistentes para o movimento anti-capitalista. Na ocasião, o jornalista concedeu uma entrevista para Marie Dominique Vernhes e Peter Strotmann, do semanário alemão de esquerda Freitag. A Carta Maior reproduz, em português, a íntegra dessa entrevista.
Nela, Ramonet faz uma análise da atual conjuntura internacional e reflete sobre a situação do Fórum Social Mundial neste contexto. Para ele, o processo FSM vive um momento de crise e impasse político. “Os movimentos sociais internacionais no momento têm sido incapazes de encontrar uma forma de articulação mais consistente que lhes permita agir de modo unitário. Não está em condições de fixar objetivos que sigam uma mesma linha”, afirma.
As organizações principais que constituem o Fórum Social Mundial, acrescenta Ramonet, estão obrigadas a se colocaram a seguinte pergunta: O que será de nós? O que devemos fazer? “Em torno de tudo isso, a questão do poder se torna importante. Todo o movimento se formou com a base na idéia que não se pode tomar o poder. Eu me pergunto se isso continua sendo verdadeiro. A experiência na América Latina mostra que com o poder nas mãos se pode fazer algo”. A seguir, a entrevista:
No Fórum Social Mundial de 2006, você disse que seria preciso fazer fracassar o projeto militar dos Estados Unidos. Isso seria necessário para criar uma margem de manobra suficiente, sem a qual todo progresso social e democrático resultaria vulnerável. Segue tendo a mesma opinião, dois anos depois?
Em princípio, sim. Por outro lado, agora surgem processos que já eram importantes em 2006 e que agora têm uma presença mais robusta ainda. Agora vemos mais claramente que estamos vivendo o fim da era do petróleo. Temos petróleo para, talvez, 40 ou 60 anos. Essa matéria prima alcançará no futuro um preço tal que só uns poucos países poderão se permitir manter uma matriz energética baseada no petróleo. Isso se converterá em uma questão estratégica, como se pode ver em anos passados. O domínio militar do mundo por parte dos EUA está determinado pelo controle do petróleo. É por isso que os EUA estão no Oriente Médio e na África, é por isso que estão em situação de hostilidade com Venezuela e Rússia. Existe o perigo de novas guerras futuras pelo petróleo.
Um segundo tema do qual já éramos conscientes é o da crise ecológica. As conseqüências da mudança climática são mais drásticas do que o previsto. Isso nos obriga a repensar radicalmente o tema do abastecimento energético, obviamente no sentido das energias renováveis, mas em alguns países também na direção da energia nuclear, com todos os perigos resultantes disso.
Como você avalia o ascenso espetacular de alguns países do Sul?
Índia e China não representam apenas uma boa terceira parte da população mundial. Se acrescentamos Brasil, África do Sul e Rússia, vemos que o peso econômico desse grupo de Estados como motor da economia mundial chega a ser maior que o dos EUA. Esses países estão em vias de dispor de fundos soberanos estatais que poderão colocá-los em situação de atuar sobre o próprio núcleo do processo de globalização. Em minha opinião, então, se colocará mais cedo do que tarde a questão de uma volta do protecionismo. Se países como China ou Índia, mas também Coréia do Sul, Malásia ou Indonésia se convertem na fábrica do mundo, apenas se poderá se seguir exportando algo ali, por mais que esses Estados representem as novas potências econômicas que poderiam comprar algo. O que acontecerá, então, com as indústrias dos países desenvolvidos do Ocidente?
Enfim, trata-se de um perigo que conhecemos há algum tempo, mas que nunca analisamos com a urgência com que agora se coloca com a quebra dos mercados de valores nos EUA. A crise hipotecária tem conseqüências para os grandes bancos norte-americanos, que agora tem que ser salvos com fundos estatais, sobretudo de países árabes.Considerando que também os bancos na Alemanha e na Suíça sejam afetados, coloca-se a questão de que se o que está a vista é uma recessão econômica mundial. China, Índia e outros países poderiam se converter no motor da economia mundial, se o motor dos EUA falhar? Se isso não ocorresse, estaríamos diante de uma crise econômica de alcance planetário.
Você também vê sintomas de decadência no potencial militar dos EUA?
Neste aspecto, os EUA ainda são o número um. Mas o Oriente Médio revela que seu poder militar não lhes garante ganhar guerras assimétricas: os EUA não conseguiram ganhar a guerra do Iraque. Talvez consigam manter-se no Iraque, mas essas coisas nunca se sabe como terminam. Os norte-americanos tampouco podem ganhar a guerra no Afeganistão. Israel não pode ganhar a guerra contra os palestinos, ao menos não militarmente, ainda que possam fazê-lo politicamente. O que se vê nessa região do mundo é que a superioridade militar não leva forçosamente à vitória militar.
O que isso significa?
Significa que os EUA não marcharão contra o Irã. Talvez bombardeiem o país, mas não o invadirão como fizeram no Iraque, com tropas terrestres. Significa também que os norte-americanos ficaram tão esgotados com todos esses conflitos que não poderão permitir-se por um certo tempo aventuras militares importante. Além disso, a Rússia está, outra vez, em vias de se converter em uma potência militar mundial relevante. Vemos, pois, que, do ponto de vista do equilíbrio militar, e sob uma ordem unipolar, está aparecendo de novo uma relação de forças multipolar.
Nestas circunstâncias, como podem seguir desenvolvendo-se os movimentos sociais e, em particular, que futuro aguarda os Fóruns Sociais Mundiais?
Infelizmente, os movimentos sociais internacionais no momento têm sido incapazes de encontrar uma forma de articulação mais consistente que lhes permita agir de modo unitário. Não está em condições de fixar objetivos que sigam uma mesma linha.
Isso impede os movimentos sociais de responder adequadamente à situação atual?
Exato. Atravessamos diferentes fases. A primeira consistiu em definir a globalização. Em meados dos anos 90, ainda não existia o movimento porque não se sabia contra quem lutar. Foi preciso que muitos intelectuais e muitas forças políticas definissem conjuntamente o inimigo e, o inimigo era a globalização. Na segunda fase se juntaram todos do Sul ao norte na luta contra a globalização. Têm-se evidentemente a impressão de que esses êxitos - particularmente, a fundação do Fórum Social Mundial - acabaram por paralisar o movimento. O movimento é hoje, potencialmente, forte, como nunca antes. É, em escala planetária, a única força em alguma medida organizada que resiste à globalização, mas ele não sabe o que fazer com essa força. Desperdiçaram-se oportunidades, ao menos eu vejo assim. Hoje estaríamos em condições de levar a cabo lutas em escala mundial. Lembre-se apenas das grandes manifestações contra a guerra no Iraque. Chegou a hora para que movimentos, como o Fórum Social Mundial, deixem de ser movimentos de resistência e entrarem em uma nova etapa com outras formas de luta.
Por que afirma isso com tanta ênfase?
A ofensiva ideológica da globalização prossegue. Constatamos que o movimento já não amedronta os dominadores. Apenas falam dele. Desde que a Attac entrou em crise na França, a imprensa francesa já não fala da Attac, tampouco fala do Fórum Social Mundial. Preocupa esse silêncio, porque demonstra que os outros têm vencido a batalha e, desde logo, por causa da dispersão. Por isso, creio que as organizações principais que constituem o Fórum Social Mundial estão obrigadas a se colocaram a seguinte pergunta: O que será de nós? O que devemos fazer? Em torno de tudo isso, a questão do poder se torna importante. Todo o movimento se formou com a base na idéia que não se pode tomar o poder. Eu me pergunto se isso continua sendo verdadeiro. A experiência na América Latina mostra que com o poder nas mãos se pode fazer algo. Isso na Europa é mais difícil devido a camisa de força que se transformou a União Européia.
Falar na América Latina hoje, queira-se ou não, significa falar no conceito de “Socialismo do século XXI”. É uma alternativa?
É, por enquanto, uma obra em construção. O próprio Hugo Chávez, que lançou esse conceito, não poderia oferecer uma definição do socialismo do século XXI, se alguém lhe perguntasse. O próprio Fidel Castro disse que o socialismo se acha em crise, o que faz com que haja distintas noções do mesmo. Ele é muito consciente disso, como pude comprovar em minhas conversas com ele.
Chávez está ciente do fato de que, em um processo de transformações políticas, chega um momento em que é preciso passar da prática à teoria. É exatamente o que fez Marx: o capitalismo já existia quando Marx definiu o que é o capitalismo. Já havia movimentos revolucionários quando Lenin elaborou teoricamente as observações sobre suas lutas, do mesmo modo que Marx fizera em relação à Comuna de Paris.
Chávez procede do mesmo modo: na América Latina o que impera hoje é sobretudo a vitalidade dos momentos de base, não a dos partidos políticos. Chávez não foi escolhido por um partido político (a social-democracia estava e segue estando contra ele). São as organizações de base com sua multiplicidade nos bairros ou não regiões, são homens e mulheres,são os indígenas com suas respectivas reivindicações. São eles que têm ajudado a triunfar personalidades como Chávez ou o novo presidente equatoriano Rafael Correa. Esse tipo de políticos vincula-se com os movimentos sociais, dando-lhes a possibilidade de ter audiência e de introduzir reformas, por exemplo, em áreas como educação e saúde. Mas chega um momento em que isso já não pode seguir sendo um instrumento estável. É preciso passar à teoria e perguntar: o que conservamos de todas essas experiências? O resultado é o Socialismo do século XXI.
Sobre o qual, contudo, não se sabe grande coisa....
...não necessariamente. Teríamos que olhar os dez anos até agora transcorridos da Revolução Bolivariana, assim como a situação mundial antes descrita, com seus aspectos ecológicos e energéticos. Como podemos elaborar conjuntamente todos esses elementos em um esquema teórico que não seja válido apenas para a Venezuela, mas para toda a humanidade. O resultado é, de novo, o Socialismo do Século XXI.
O processo no qual nos encontramos agora vai mais além da situação que tínhamos com o Subcomandante Marcos e os zapatistas no México. Marcos desempenhou um papel extremamente importante a ponto de convencer a muitos resistentes do mundo sobre a necessidade de se unir. Deu um impulso muito grande nesta direção, do mesmo modo que Pierre Bourdieu na França, Noam Chomsky, o movimento sindical, o Le Monde Diplomatique, o Attac. Mas chega um momento em que é preciso passar a uma nova fase. Quando a idéia de que os movimentos sociais são a única força que pode agir efetivamente torna-se um fetiche, então o movimento fica paralisado.
Você tem conversado muito com Fidel Castro e escreveu um livro que é resultado dessas conversas. Em sua opinião, que experiências cubanas deveria ser admitidas e quais deveriam ser evitadas?
Seria preciso evitar, em primeiro lugar, a confrontação com a primeira potência da Terra. Isso é, claro, dificílimo, mas quando alguém está exposto a um bloqueio dos EUA as restrições daí decorrentes tornam a vida muito difícil. Também seria preciso evitar que só um partido fosse permitido. Em troca, parece-me digna de imitação toda a política social. Mas não só ela: há uma política de constante consulta aos trabalhadores. Em Cuba, há pleno emprego. As cooperativas surgem com toda liberdade, especialmente no campo.
Cuba é um país muito pequeno que não está em condições de viver autarquicamente e que já padeceu, ao longo de sua história, de três dependências: primeiro da Espanha, depois dos EUA e mais tarde, ainda que de um modo distinto, da União Soviética. Eu creio que o que os cubanos querem é deixar de ser dependentes. Aqueles que falam agora de uma dependência em relação a Venezuela passam por alto que se trata de uma relação de natureza muito diferente. Porque o que os cubanos podem oferecer em troca é muito importante. Ainda que não se possa quantificar em termos petrolíferos, é um fator de grande importância. Graças aos professores cubanos, o analfabetismo foi erradicado na Venezuela. Veja você, em troca, o que ocorreu na Nicarágua, onde houve, sob os sandinistas, uma importante campanha de alfabetização: o analfabetismo reapareceu e, hoje, 35% das pessoas são analfabetas. Isso é dramático.
Assim, uma boa quantidade de experiências cubanas merece ser conservada e creio que os próprios cubanos querem manter muito do que os faz únicos. Mas neste país há uma sociedade muito complexa, não monolítica. Um partido único não está em condições de representar a multiplicidade de aspirações dos cubanos.
Castro disse que essa multiplicidade pode encontrar lugar no partido único...
É verdade, mas o que diz, sobretudo, é que em um país ameaçado pela primeira potência mundial a unidade é o fator mais importante a conservar. Por isso é tão elementar que essa ameaça deve cessar. No dia que acabar, haverá progressos no reconhecimento da pluralidade da sociedade cubana. Fala-se muito do modelo chinês, mas os cubanos miram-se também no espelho do que ocorre no Vietnã.
A entrevista foi publicada, em espanhol, em Sinpermiso
(Tradução de Amaranta Süss)
Tradução do espanhol para português: Marco Aurélio Weissheimer
Fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14796
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